Texto de: Ed René
Kivitz
O relacionamento entre Deus e a pessoa – raça humana, baseado no
paradigma salvação e danação – ir para o céu ou para o inferno, pode ser
interpretado pelo menos de duas maneiras. A maneira mais tradicional foi bem
caricaturada pelo meu amigo Ricardo Gondim em sua “metáfora da festa”, que
apresenta um Deus furioso dizendo à raça humana algo mais ou menos assim:
“Vocês estragaram a minha festa, e eu vou estragar a festa de vocês. Sairei
atrás de vocês com um chicote em punho, ferindo de morte todos os que se
rebelaram contra mim e mostrarei quem tem a autoridade e o poder no mundo.
Pouparei alguns poucos para dar ao universo um vislumbre de minha misericórdia,
bondade e graça, e não terei piedade do restante da raça, que amargará no
inferno, por toda a eternidade, a escolha errada que fez ao abandonar a minha
festa”.
Essa descrição tradicional, que chamo de “paradigma moral”,
compreende o pecado como um ato de desobediência que desperta a ira de Deus.
Mas há outra maneira de perceber a relação entre Deus e a pessoa humana, que
chamo “paradigma ontológico”. A metáfora do corpo pode ajudar. Imagine que Deus
e a raça humana são uma unidade em que Cristo é o/a cabeça e a raça humana é o
corpo. Imagine também que cada membro do corpo tem um cérebro, e que, portanto,
a harmonia do corpo depende do alinhamento de todos os pequenos cérebros (dos
membros) com o grande cérebro (do/da cabeça). Caso o cérebro do braço direito
se rebele e comece a esbofetear o rosto, isso seria uma rebelião moral. Mas se
o cérebro do braço direito reivindicasse ser amputado do corpo para viver de
maneira autônoma, isso seria uma rebelião ontológica: uma pretensão de viver
como ser auto suficiente, à parte do corpo, rompendo a unidade original do
corpo e gerando, então, dois seres. O grande cérebro diria ao braço: “Você não
conseguirá sobreviver, você não tem vida em si mesmo, sua vida depende de estar
no corpo”. Mas o braço insistente, se amputaria do corpo e ao debater-se no
chão, com energia residual, imaginaria ainda estar vivo, mesmo separado do
corpo. Até que morresse. Nessa metáfora (quase grotesca, desculpe), Deus não
estaria ocupado em punir, destruir ou condenar o braço rebelde, mas faria todo
o possível para reimplantar o braço no corpo.
A “metáfora da festa”, mais popular, é bem simbolizada no famoso
sermão de Jonathan Edwards, no movimento puritano da Inglaterra do século XVI,
entitulado: “Pecadores nas mãos de um Deus irado”.
Alguém precisa oferecer outro sermão, que bem poderia receber como
título: “Pecadores nas mãos de um Deus ferido de amor”. Nele estaria um Deus
que sofre ao perceber suas criaturas se rebelando contra o amor, a verdade, a
compaixão, a justiça e a solidariedade, por exemplo, e ferindo-se umas às
outras. Deus seria apresentado, nas palavras de Jesus, como Aquele que “não
apagará o pavio que fumega; não esmagará a cana trilhada”. Os pecadores seriam
expostos não ao Deus que tem nas mãos um chicote e espuma o ódio transbordando
de sua boca, mas um Deus com lágrimas nos olhos, caminhando entre os homens com
laços de amor, sussurrando nas praças: “Com amor eterno eu te amo e com
misercórdia te chamo”.
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