Sujeito a cobrança por: Paulo Brado
Em 8 de abril de 2012, dia de Páscoa, a Bacia
das Almas, sáite onde escrevi desde 2004 (e que em 2009 deu à luz um livro com
o mesmo nome), passou desta para melhor, juntou-se aos seus ancestrais, foi
prestar contas ao seu criador. Com um gesto um pouco excessivo e canastrão,
como sempre foi da sua índole, a Bacia terminou. Fechou as portas. Continua ali
onde sempre esteve, ao ar livre, mas experimenta por isso mesmo os primeiros
sinais de decomposição. Ainda não tenho coragem de enterrá-la.
É claro que eu sempre soube que a Bacia não
seria eterna; cheguei a anunciar a iminência do seu passamento uma vez ou duas.
Mas, até que ela terminou, achei que o fim seria mais estrepitoso, mais
convincente, mais relevante. Ao invés disso a Bacia, como quase todos,
simplesmente apagou sem anúncio; no seu caso, de causas naturais e durante o
sono, sem sofrimento e sem salvas de canhão. Como todos, deixou projetos
incompletos e questões mal-resolvidas.
Naturalmente que não tenho como me desligar
da sua memória sem alguma transição. Primeiro porque planejo raspar da Bacia
mais um livro ou dois, um dos quais deve sair ainda este ano, com material
inédito mas também com muita coisa tirada destes arquivos. Segundo porque
pretendo continuar guardando aqui uma moeda ocasional, algum anúncio ou alguma
inquietação, por um período de luto respeitoso de sombra e de luz, de
celebração e de lamento, no espaço entre a lembrança e o esquecimento.
Porém essa atividade eventual só servirá para
enfatizar o que não há como contornar: que a Bacia terminou o seu ciclo entre
os homens.
Desnecessário dizer, aos leitores
impenitentes que ainda não se conformaram a circular por outras partes, que seu
passamento não deve ser de forma alguma lamentado. É assim que a Bacia gostaria
que fosse – especialmente porque parte essencial do que venho tentando
articular ao longo desses anos (ignoro com quão pouco sucesso, mas imagino) é
que o que há de relevante e de interessante nesta vida acontece depois do fim.
Com frequência cada vez maior penso que a
grande contribuição da mensagem cristã, a novidade que representou tamanha
reviravolta no modo de se ver o mundo que, passados dois milênios, continua
produzindo improváveis ebulições em todas as áreas da cultura e do pensamento –
tenha sido justamente essa: a de ensinar e desafiar aos homens a viver nesta
vida uma vida depois do fim.
Naturalmente, em tradições mais antigas do
que o cristianismo a expectativa do fim e a ideia do fim já representavam um
papel fundamental no modo como as pessoas viam o mundo. Os egípcios sonharam
uma formidável viagem pós-morte rumo à eternidade nas estrelas, os gregos
pesaram a sobrevivência da alma imponderável depois da cessação do corpo físico
e os judeus vislumbraram um juízo final que saberia regular os desequilíbrios
da terra e corrigir as injustiças desta vida. Neste sentido, os povos já
mapeavam e antecipavam algum modo de existência depois do fim, e usavam esse
ponto final como marco fundamental no horizonte: era ao mesmo tempo um destino
e uma esperança, um vértice e uma ameaça que servia para alinhar os rumos da
vida e orientar os meandros da cultura.
A sacada espetacular do cristianismo foi
introduzir modos de discurso que falam, por assim dizer, de uma antecipação do
fim. A mensagem evangélica pesca o fim de sua posição num futuro inalcançável
(e, portanto, sempre um pouco irrelevante) e o arrasta para esta vida, para o
aqui e o agora, para o fulcro sem escapatória de hoje. Imagens como batismo,
ressurreição, salvação, arrependimento e novo nascimento articulam em harmonia
essa mesma antecipação do fim, e abrem desse modo a perspectiva inédita de um
depois que, assombrosamente, começa agora.
Cristãos são essencialmente gente que resolve
ou acredita habitar, aqui neste mundo, o mundo depois do fim. É isso,
basicamente isso; porém a notícia, que era uma vertigem quando foi proposta,
permanece vertigem nos nossos dias. Essa conversão, essa mudança fundamental de
ponto de vista, mostrou-se irresistível desde o início e (a despeito de todos
os mal tratos a que se submeteu a ideia original) não perdeu de todo o seu
fascínio ao longo das gerações. No fim das contas essa é uma perspectiva
(talvez a única, embora possa ser articulada de várias formas) capaz de
imprimir, em cada um, uma luz nova e sem precedentes sobre as coisas e os
ritmos de sempre.
Quer seja um rei ou um escravo, um ser humano
que por alguma razão passa a acreditar-se habitante do mundo depois do fim
sente-se de modo súbito e inesperado alçado de vítima à condição de senhor do
seu mundo. Seu status de sobrevivente o torna de certo modo invulnerável, uma
figura sempre um pouco subversiva e inerentemente perigosa para o sistema.
Como o mundo dos limites usuais e das coisas
de sempre deixa de repente de ser o seu mundo, esse cara deixa finalmente de
sentir-se neste mundo como um estranho e como um estrangeiro. O tempo e o corpo
e as vastidões acima das propriedades e o chão dos pés descalços e o toque dos
rios; todo o espaço da vida passa a ser uma herdade recuperada a ser
experimentada com inteireza e com serenidade, com uma desilusão redentora que é
ao mesmo tempo uma espécie autossuficiente de felicidade.
Para um habitante do sempre saturado mundo
ocidental, essa doce desilusão que é uma cura consiste na salvação.
Porque, como seres humanos que somos, vivemos
de tentar atribuir significado ao que não tem, pelo que sabemos, significado algum.
Essa tarefa sem fim de espalhar significados ao longo do curso de um universo
frio e perplexo se chama cultura e fé e, muito pobremente, civilização.
Essa missão exigentíssima e mortal nos
consome e nos define, pelo que vivemos incessantemente buscando um sentido que
sobreviva à cessação definitiva, ao momento em que o universo nos devorará
finalmente a carne e as ideias: um sentido que sobreviva depois do fim.
É naturalmente por isso que ouvimos
histórias, participamos de ritos e lemos livros: porque as histórias e os
livros e os ritos terminam vez após outra e nós perduramos, ao menos por um
pouco de tempo. Toda a cultura consiste no elencar desses rituais que encenam
um processo conduzido solenemente até um fim a que podemos, ao contrário daquele
definitivo, sobreviver. Não há na realidade livros bons ou satisfatórios, mas
mesmo os livros mais medíocres terminam, e é sobreviver a esse senso de
conclusão e de resolução a redenção que procuramos neles e neles encontramos.
A esperança é a última que morre, e só não
morre porque sobrevive de alimentar-se da longa fila de fins transitórios e
transicionais que antecipam o último. Resta sempre a esperança que o próximo
fim suplente se mostrará maior e mais suficiente do que este que acabamos de
deixar para trás.
É tola e é só uma esperança, mas se deixasse
de ser uma coisa deixaria também de ser a outra.
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