terça-feira, 15 de maio de 2012

Depois do Fim...




Sujeito a cobrança por: Paulo Brado

Em 8 de abril de 2012, dia de Páscoa, a Bacia das Almas, sáite onde escrevi desde 2004 (e que em 2009 deu à luz um livro com o mesmo nome), passou desta para melhor, juntou-se aos seus ancestrais, foi prestar contas ao seu criador. Com um gesto um pouco excessivo e canastrão, como sempre foi da sua índole, a Bacia terminou. Fechou as portas. Continua ali onde sempre esteve, ao ar livre, mas experimenta por isso mesmo os primeiros sinais de decomposição. Ainda não tenho coragem de enterrá-la.

É claro que eu sempre soube que a Bacia não seria eterna; cheguei a anunciar a iminência do seu passamento uma vez ou duas. Mas, até que ela terminou, achei que o fim seria mais estrepitoso, mais convincente, mais relevante. Ao invés disso a Bacia, como quase todos, simplesmente apagou sem anúncio; no seu caso, de causas naturais e durante o sono, sem sofrimento e sem salvas de canhão. Como todos, deixou projetos incompletos e questões mal-resolvidas.

Naturalmente que não tenho como me desligar da sua memória sem alguma transição. Primeiro porque planejo raspar da Bacia mais um livro ou dois, um dos quais deve sair ainda este ano, com material inédito mas também com muita coisa tirada destes arquivos. Segundo porque pretendo continuar guardando aqui uma moeda ocasional, algum anúncio ou alguma inquietação, por um período de luto respeitoso de sombra e de luz, de celebração e de lamento, no espaço entre a lembrança e o esquecimento.

Porém essa atividade eventual só servirá para enfatizar o que não há como contornar: que a Bacia terminou o seu ciclo entre os homens.

Desnecessário dizer, aos leitores impenitentes que ainda não se conformaram a circular por outras partes, que seu passamento não deve ser de forma alguma lamentado. É assim que a Bacia gostaria que fosse – especialmente porque parte essencial do que venho tentando articular ao longo desses anos (ignoro com quão pouco sucesso, mas imagino) é que o que há de relevante e de interessante nesta vida acontece depois do fim.

Com frequência cada vez maior penso que a grande contribuição da mensagem cristã, a novidade que representou tamanha reviravolta no modo de se ver o mundo que, passados dois milênios, continua produzindo improváveis ebulições em todas as áreas da cultura e do pensamento – tenha sido justamente essa: a de ensinar e desafiar aos homens a viver nesta vida uma vida depois do fim.

Naturalmente, em tradições mais antigas do que o cristianismo a expectativa do fim e a ideia do fim já representavam um papel fundamental no modo como as pessoas viam o mundo. Os egípcios sonharam uma formidável viagem pós-morte rumo à eternidade nas estrelas, os gregos pesaram a sobrevivência da alma imponderável depois da cessação do corpo físico e os judeus vislumbraram um juízo final que saberia regular os desequilíbrios da terra e corrigir as injustiças desta vida. Neste sentido, os povos já mapeavam e antecipavam algum modo de existência depois do fim, e usavam esse ponto final como marco fundamental no horizonte: era ao mesmo tempo um destino e uma esperança, um vértice e uma ameaça que servia para alinhar os rumos da vida e orientar os meandros da cultura.

A sacada espetacular do cristianismo foi introduzir modos de discurso que falam, por assim dizer, de uma antecipação do fim. A mensagem evangélica pesca o fim de sua posição num futuro inalcançável (e, portanto, sempre um pouco irrelevante) e o arrasta para esta vida, para o aqui e o agora, para o fulcro sem escapatória de hoje. Imagens como batismo, ressurreição, salvação, arrependimento e novo nascimento articulam em harmonia essa mesma antecipação do fim, e abrem desse modo a perspectiva inédita de um depois que, assombrosamente, começa agora.

Cristãos são essencialmente gente que resolve ou acredita habitar, aqui neste mundo, o mundo depois do fim. É isso, basicamente isso; porém a notícia, que era uma vertigem quando foi proposta, permanece vertigem nos nossos dias. Essa conversão, essa mudança fundamental de ponto de vista, mostrou-se irresistível desde o início e (a despeito de todos os mal tratos a que se submeteu a ideia original) não perdeu de todo o seu fascínio ao longo das gerações. No fim das contas essa é uma perspectiva (talvez a única, embora possa ser articulada de várias formas) capaz de imprimir, em cada um, uma luz nova e sem precedentes sobre as coisas e os ritmos de sempre.

Quer seja um rei ou um escravo, um ser humano que por alguma razão passa a acreditar-se habitante do mundo depois do fim sente-se de modo súbito e inesperado alçado de vítima à condição de senhor do seu mundo. Seu status de sobrevivente o torna de certo modo invulnerável, uma figura sempre um pouco subversiva e inerentemente perigosa para o sistema.

Como o mundo dos limites usuais e das coisas de sempre deixa de repente de ser o seu mundo, esse cara deixa finalmente de sentir-se neste mundo como um estranho e como um estrangeiro. O tempo e o corpo e as vastidões acima das propriedades e o chão dos pés descalços e o toque dos rios; todo o espaço da vida passa a ser uma herdade recuperada a ser experimentada com inteireza e com serenidade, com uma desilusão redentora que é ao mesmo tempo uma espécie autossuficiente de felicidade.

Para um habitante do sempre saturado mundo ocidental, essa doce desilusão que é uma cura consiste na salvação.

Porque, como seres humanos que somos, vivemos de tentar atribuir significado ao que não tem, pelo que sabemos, significado algum. Essa tarefa sem fim de espalhar significados ao longo do curso de um universo frio e perplexo se chama cultura e fé e, muito pobremente, civilização.

Essa missão exigentíssima e mortal nos consome e nos define, pelo que vivemos incessantemente buscando um sentido que sobreviva à cessação definitiva, ao momento em que o universo nos devorará finalmente a carne e as ideias: um sentido que sobreviva depois do fim.

É naturalmente por isso que ouvimos histórias, participamos de ritos e lemos livros: porque as histórias e os livros e os ritos terminam vez após outra e nós perduramos, ao menos por um pouco de tempo. Toda a cultura consiste no elencar desses rituais que encenam um processo conduzido solenemente até um fim a que podemos, ao contrário daquele definitivo, sobreviver. Não há na realidade livros bons ou satisfatórios, mas mesmo os livros mais medíocres terminam, e é sobreviver a esse senso de conclusão e de resolução a redenção que procuramos neles e neles encontramos.

A esperança é a última que morre, e só não morre porque sobrevive de alimentar-se da longa fila de fins transitórios e transicionais que antecipam o último. Resta sempre a esperança que o próximo fim suplente se mostrará maior e mais suficiente do que este que acabamos de deixar para trás.

É tola e é só uma esperança, mas se deixasse de ser uma coisa deixaria também de ser a outra.

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