Para que a vida não seja banal
Texto de: Ricardo Gondim
Depois de reler os meus últimos textos, aquiesço: tenho sido repetitivo. Volto ao mesmo passado e reitero as mesmas contrições. Recorro a remorsos sovados: não saber separar o urgente do importante; calar quando o silêncio era vantajoso; confundir ingenuidade com ímpeto. Talvez eu precise dessa recorrência para purgar o coração. Não sei.
Olho para trás e vejo como a minha reflexão, rica em carisma, era pobre de conteúdo. Abdiquei de pensar por mim para empolgar auditórios. Transformei-me em caixa de ressonância de um sub grupo cultural – e religioso – que adorava o êxtase. Eu falei o que o grupo consentia, e gostava de ouvir.
Ainda não me considero velho, mas sei que estou a poucos quilômetros da linha de chegada. Sinto a hora de encarar perguntas difíceis. Não resta motivo para evitar questionamentos que possam me indispor com a congregação.
Absorto em construir um mito, gastei muita energia em defendê-lo. Tornei-me escravo do lugar comum; metralhei clichês a ermo, sem parar e sem refletir na pertinência deles. Despejei chavões religiosos tanto para Deus como para as pessoas. Minhas preces eram “sem noção”.
Certa vez, fiz declarações tão categóricas sobre “os milagres de Deus” que uma pessoa me questionou. “Ricardo, você não se importa em conectar seu discurso com a mãe da menina com paralisia cerebral que veio à conferência?”. Tenho vergonha de como me safei: “Meu dever é falar sobre as verdades de Deus e o dever d’Ele é agir. Se a criança saiu daqui sem receber o milagre, que a mãe brigue com Deus, não comigo”.
Essa postura fria separou a minha teoria da vida. Eu me blindei do sofrimento que meu discurso produzia. Enquanto me distanciei dos dramas pessoais inflei o ego. Como é fácil inebriar-se com a exuberância das próprias palavras, e voltar as costas ao sofrimento humano. Narcotizei-me com a poderosa anfetamina da retórica descompromissada.
É possível imaginar o tamanho do desengano. Eu não era nada do que fantasiava. Anos depois, muita gente não só rejeitou minha fala como me atacou. Sofri, angustiado. Eu não conseguia entender como as pessoas se atreviam desprezar o que eu considerava “A Revelação” (assim, maiúscula). Hoje, me obrigo a fugir do ufanismo que os grandes discursos provocam. Não pretendo perpetuar a Síndrome de Apolo – acreditando que toda palavra seja um oráculo. Abro mão de possuir uma eloquência capaz de converter o mundo.
Não tenho mais como me ver arauto sagrado. Os mistérios eternos escapam da minha alça de mira. Escrevo, falo, ensino apenas como vocação. Se conseguir oferecer meus débeis arrazoamentos, ficarei feliz. Foi difícil, mas aprendi: não é possível ser uma unanimidade.
Assim, encaro o desafio fugir do messianismo. Quimeras de onipotência só me feriram. Me colocaram diante de uma dura realidade: toda capacidade tem limites estreitos; mais estreitos do que jamais admiti. Por anos também pensei encarnar Atlas; eu queria carregar o mundo nas costas. Violei a termodinâmica e trabalhei como um moto-contínuo.
Aprendo a dizer não. Celebro o sossego. Desculpo o ócio. Fecho os olhos para os acenos do sucesso. Desejar glória perdeu sentindo. O brilho da fama, que azeitou o meu ativismo, apagou-se. Confesso: eu amei o badalo das multidões. Mas desejo desprezar isso tudo: holofotes, confetes, gabação. Entediado com estrelismo, privilegio ambientes intimistas. Elejo pequenos grupos para um bate papo descontraído.
As decepções foram tantas que devo resguardar-me do cinismo. Presenciei – e até compactuei – com a instrumentalização de pessoas para viabilizar projetos institucionais. Agora, se não viver com integridade, me condeno à senvergonhice.
Eu dava de ombros para os gigantescos campos de exilados das Nações Unidas – sabia explicar direitinho os motivos para Deus derramar sua ira sobre eles. Minha religião se preocupava com trivialidades. Alheio à malária, ao cólera, ao tráfico humano, ao HIV, acreditei e vociferei dogmas redentores. Chego à idade de transformar a caminhada religiosa em espiritualidade compromissada.
Quero arraigar a fé, trazer a devoção para o dia-a-dia, catalisar iniciativas que respondam ao sofrimento do miserável. Salvo a alma se responder à graça, inquietar os confortáveis, confortar os destituídos, provocar engajamento e oferecer o ombro aos indignados com a injustiça. Não sei quantos anos ainda tenho, mas, insisto, eles não serão banais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário