sexta-feira, 27 de abril de 2012

Encarno o Semeador



Parte do poema de Aleksandr Púchkin (1823)

"Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
nos sulcos vis da escravidão.
Mas todo o esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.

Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata."

terça-feira, 24 de abril de 2012

Pensando na varanda...




Reflexão de: Felipe d'Oliveira
Acredito...
Acredito em um Deus que ensina a perdoar, me perdoando.
Acredito em um Deus que não é vingativo contra meus inimigos, pois o Deus em que acredito me ensina a amar os inimigos.
Acredito em um Deus que dá forças para que eu chegue aos objetivos da vontade dEle, não em um deus cheio de promessa.
Acredito em um Deus Pai, mais um Pai que cria seu filho igual a águia, ensinando a viver, não mimando.
Acredito em um Deus que preza pelo reconcilio não pelas guerras pessoais.
Por fim, acredito em um Deus criador, que criou o homem para que viva em louvor da sua glória não em exibicionismo para o próximo.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Amor de Deus não é Incondicional




Reflexão de: Ariovaldo Ramos


É um equívoco dizer que o amor de Deus é incondicional, para que seja assim o amor de Deus deveria cumprir duas condições que, a meu ver, estão implícitas no termo incondicionalidade: a não necessidade de pré-requisito e a não expectativa de reciprocidade. Vejamos:


A- "Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro." I Jo 4.19 (RC)


Deus não ama incondicionalmente: Deus ama para ser amado. Deus espera que seu amor por nós desperte amor por Ele. Se Deus amasse incondicionalmente a salvação teria de ser universal.


Incondicionalidade significa não exigir nenhum pré-requisito e não esperar nenhum tipo de resposta. Não é o caso: Deus espera ser amado. Logo, antes de ser incondicional, o amor de Deus atua para criar em nós condições de amá-lo. Não é incondicional porque dos dois fatores que demarcam a incondicionalidade: a ausência de pré-requisito e o não aguardo de resposta - o amor de Deus contempla apenas o primeiro. O amor de Deus não exige pré-requisito: "Mas Deus mostrou-nos até que ponto nos ama, pois, quando ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós." (Rm 5.8 - SBP) O amor de Deus, entretanto, exige uma resposta: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." (Jo 3.16 – RA) – Deus ama ao mundo, mas só salva àquele que responde ao seu amor.


B- "O amor de Cristo absorve-nos completamente, pois sabemos que se ele morreu por todos, então todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou." 2Co 2.14,15 (SBP)


O amor sacrificial de Cristo é suficiente para salvar a todos, mas, é eficaz aos que, conscientes desse amor, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. O amor de Cristo espera gerar conversão, para que haja salvação.


C- "Nós sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, dos que são chamados segundo o seu plano." Rm 8.28 (SBP)


Deus é soberano, mas se responsabiliza pela história daqueles que o amam; o caminho dos ímpios, porém, perecerá (Sl 1.6). Deus garante que interferirá na história para que esta seja benéfica para os que o amam, contudo, deixará que os ímpios sigam livremente o seu curso, o que terminará em perdição. E, ímpios são os que não respondem ao amor de Deus.


D- "Foi antes da festa da Páscoa. Jesus sabia que tinha chegado a sua hora de deixar este mundo para ir para o Pai. E ele, que amou sempre os seus que estavam no mundo, quis dar-lhes provas desse amor até ao fim. (...) Levantou-se então da mesa, tirou a capa e pegou numa toalha que pôs à cintura. Depois deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha. (...) Se eu, que sou Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também de agora em diante devem lavar os pés uns aos outros." Jo 13. 1, 4, 5, 14 (SBP)


Mesmo o ato mais amoroso e aparentemente incondicional de Cristo tinha um propósito: provocar conversão em seus discípulos, de modo que o imitassem. Não era, portanto, uma demonstração da incondicionalidade de seu amor, mas um ato pedagógico visando um fim específico. Deus ama primeiro, porém não incondicionalmente, ele espera uma resposta.


E- "E diz também: Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer e se tem sede dá-lhe de beber. Ao fazeres isso, farás com que a cara lhe arda de vergonha." Rm 12.20 (SBP)


Mesmo o amor com que Deus manda que amemos não é incondicional, espera uma resposta. Ainda que a gente não deva parar de amar por motivo nenhum: "E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido." Gl 6.9 (RA) – a gente, também, não pode perder a esperança de alcançar a resposta desejada.


F- "Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força." Dt 6.4,5


Deus espera ser amado, porque esta é a única maneira adequada de relacionar-se com Deus na beleza de sua exclusividade, de sua santidade: amá-lo acima de todas as coisas – o que significa sempre escolher a Deus, não importa quão tentadora seja a possibilidade oferecida; quem ama a Deus acima de todas as coisas só escolhe o que Deus escolheria, porque sempre escolhe a Deus.


G- "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou." Jo 14.21,24 (RA) "Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou." 1Jo 2.4-6 (RA)


Quem ama a Deus? Aquele que o obedece. O que acontece com aquele que obedece a Deus? O amor de Deus é nele aperfeiçoado, isto é, nele o amor que saiu de Deus consegue cumprir a missão para a qual saiu. Deus ama para ser obedecido! Quem não obedece a Deus como resposta ao seu amor, não só não o ama como nem o conhece de fato; logo, não pode nele permanecer, até porque nem está nele.


H- "Nem todos aqueles que me dizem: ‘Senhor, Senhor!’ entrarão no reino dos céus, mas apenas os que fazem a vontade de meu Pai que está nos céus." Mt 7.21 (RA)


Os que não obedecem a Deus não serão salvos, não porque a salvação seja pelas obras, mas porque a graça de Deus, que em nós foi derramada, nos torna filhos da obediência, prontos para as boas obras e para andar de modo digno do chamado que recebemos; porque, pela graça, somos fortalecidos com poder no homem interior, podendo, assim, ser imitadores de Deus, como filhos amados, como nos ensina o apóstolo Paulo, na carta aos efésios.


Então, quem peca não é salvo? Para os que caem em pecado há uma palavra de obediência que, em sendo cumprida, demonstra que eles, ainda amam ao Senhor, embora, por um momento, o tenham desonrado: "Mas se confessarmos os nossos pecados, Deus que é fiel e justo perdoará os nossos pecados e nos purificará de todo o mal." I Jo 1.9 (SBP). Há uma ordem clara para todo o que, se dizendo filho de Deus, cai em pecado: arrepender-se. A ordem é não pecar, contudo, disse João: "Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo." I Jo 2.1 (RA). É preciso, entretanto, ter sempre em mente a palavra do apóstolo: "Todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu. Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus." I Jo 3.4,8 (RA)


O amor de Deus não é incondicional, Deus ama para ser obedecido.


Tudo, na Bíblia, parece dizer que Deus não deixa de amar porque não houve resposta ao seu amor, entretanto, também não deixa de esperar que essa resposta venha. E se ela não vier, apesar de todo o amor que dispensa às suas criaturas, executará o juízo.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os bem-aventurados






De: Felipe d'Oliveira


Resolvi entender os Bem-aventurados que Jesus enfatiza em Mateus 5, ai estão eles
que possamos nos enquadrar nessas bem aventuranças:


"Afortunado são os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
Tem felicidade perfeita os que choram, porque eles serão consolados;
Santo são os mansos, porque eles herdarão a terra;
Arriscados são os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos;
Aventuroso são os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;
Feliz são os limpos de coração, porque eles verão a Deus;
Ditoso são os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus;
Tem felicidade inevitável os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus;
Feliz sois vós, quando vos incomodarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa."

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Pensando na varanda...



Pensando na varanda com: Santo Agostinho


Há pessoas que desejam saber só por saber, e isso é curiosidade; outras, para alcançarem fama, e isso é vaidade; outras, para enriquecerem com a sua ciência, e isso é um negócio torpe; outras, para serem edificadas, e isso é prudência; outras, para edificarem os outros, e isso é caridade"

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O mais escandaloso ato


[Nicolae Steinhardt, monge ortodoxo romeno, 1912 – 1989]

O cristianismo, vede bem, não é uma simples escola de saber, da purificação e justiça, ou uma explicação nobre e racional da vida; ou um código nobre de comportamento; ou uma terapêutica evasionista; ou um conjunto de perguntas; ou um ato de submissão diante do Único. É muito mais e mais distinto: é o ensinamento de Cristo, ou seja, do amor e do poder salvador de perdoar. Nenhuma religião concebe o corrigir dos pecados por outro modo senão pelo caminho da lógica da compensação; apenas na religião em que Deus não recebe sacrifícios, mas se sacrifica Ele mesmo, pôde aparecer a esperança da limpeza total e instantânea dos pecados, pelo mais atemorizador e anticontabilista – portanto o mais escandaloso – ato.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Prece


Fernando Pessoa
SENHOR, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu. Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo)  – eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. [...]
Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Outra espiritualidade possível


Pensamentos de: Ricardo Gondim

Como a cigarra que só deixou uma casca, chegou a hora de algumas instituições religiosas se verem  mero registro histórico de boas intenções. E deixem suas suntuosas catedrais como recordação da religião imponente, guerreira, voluntariosa, que um dia foram.
Passou o tempo da religião especializada em doutrinar. Ficou para trás o sistema obcecado por pensamentos lineares; intransigente nas leituras literais; inflexível nos pressupostos. O projeto de incutir salvação como anuência acabou. Aprender o catecismo para ser considerado um discípulo mostrou-se incapaz de promover um bem social. A religião que privilegiou o individualismo se esvaziou. O bem coletivo nasce do diálogo, da abertura para o diferente, nunca de decorebas. Para ressurgir, o movimento, que se pretendia evangélico, deve abandonar sua casca dogmática e legalista – que teve pertinência, mas hoje exige a alma de muitos.
No desmonte desse esqueleto religioso, é preciso denunciar  também o eleicionismo teológico. Nada mais patético do que considerar-se preferido entre bilhões. Saber-se eleito significa acreditar que em alguma época passada, numa eternidade remotíssima, Deus distinguiu alguns e preteriu a maioria. Indica afirmar que os benefícios divinos foram seletivamente distribuídos – sem que se saiba por quais critérios. Essa convicção só pode gerar uma segurança ilusória – que não só enche de empáfia, como ajuda a distanciar o punhado sortudo do drama que os demais sofrem. Vaidade espiritual vem daí.
Há de repensar-se a função do sacerdote. Não pode existir uma elite representante de Deus. Como aceitar que o acesso ao Divino seja complicado ao ponto de exigir burocratas? Peritos, especialistas em divindade, não passam de sicofantas – carreiristas, alpinistas amarrados ao sagrado.
Espiritualidade não se reduz à técnica; ela prescinde de traquejos. Um “Deus que funciona” não passa de um autômato. As relações com ele não dependem de se aprender o jeito de fazê-lo responder a estímulos corretos.
 O clericalismo, detentor dos mistérios da divindade, abriu a porteira do estrelismo. E religião que reforça vedetismo, robustece ego e desmerece a simplicidade, não é digna de ser chamada “seguimento de Jesus”. Na mensagem do Nazareno, benignidade triunfa sobre teoria e a busca da justiça se concretiza em ações transformadoras.
Longe da mentalidade gerencial, outra espiritualidade florescerá nas fissuras das estradas de terra. Ali, na poeira do dia a dia, virtude desprezará gestos ocasionais para grudar na pele de pessoas comuns.
O percurso que separa o cristianismo da cristoformidade parece longo e difícil. Todavia, não vai demorar os seguidores de Jesus aprenderem que: “Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo”. [Tiago 1.27]

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Para que a vida não seja banal

 

Texto de: Ricardo Gondim

Depois de reler os meus últimos textos, aquiesço: tenho sido repetitivo. Volto ao mesmo passado e reitero as mesmas contrições. Recorro a remorsos sovados: não saber separar o urgente do importante; calar quando o silêncio era vantajoso; confundir ingenuidade com ímpeto. Talvez eu precise dessa recorrência para purgar o coração. Não sei.

Olho para trás e vejo como a minha reflexão, rica em carisma, era pobre de conteúdo. Abdiquei de pensar por mim para empolgar auditórios. Transformei-me em caixa de ressonância de um sub grupo cultural – e religioso –  que adorava o êxtase. Eu falei o que o grupo consentia, e gostava de ouvir.

Ainda não me considero velho, mas sei que estou a poucos quilômetros da linha de chegada. Sinto a hora de encarar perguntas difíceis. Não resta motivo para evitar questionamentos que possam me indispor com a congregação.

Absorto em construir um mito, gastei muita energia em defendê-lo. Tornei-me escravo do lugar comum; metralhei clichês a ermo, sem parar e sem refletir na pertinência deles. Despejei chavões religiosos tanto para Deus como para as pessoas. Minhas preces eram “sem noção”.

Certa vez, fiz declarações tão categóricas sobre “os milagres de Deus” que uma pessoa me questionou. “Ricardo, você não se importa em conectar seu discurso com a mãe da menina com paralisia cerebral que veio à conferência?”. Tenho vergonha de como me safei: “Meu dever é falar sobre as verdades de Deus e o dever d’Ele é agir. Se a criança saiu daqui sem receber o milagre, que a mãe brigue com Deus, não comigo”.

Essa postura fria separou a minha teoria da vida. Eu me blindei do sofrimento que meu discurso produzia. Enquanto me distanciei dos dramas pessoais inflei o ego. Como é fácil inebriar-se com a exuberância das próprias palavras, e voltar as costas ao sofrimento humano. Narcotizei-me com a poderosa anfetamina da retórica descompromissada.

É possível imaginar o tamanho do desengano. Eu não era nada do que fantasiava. Anos depois, muita gente não só rejeitou minha fala como me atacou. Sofri, angustiado.  Eu não conseguia entender como as pessoas se atreviam desprezar o que eu considerava “A Revelação” (assim, maiúscula). Hoje, me obrigo a fugir do ufanismo que os grandes discursos provocam. Não pretendo perpetuar a Síndrome de Apolo – acreditando que toda palavra seja um oráculo. Abro mão de possuir uma eloquência capaz de converter o mundo.

Não tenho mais como me ver arauto sagrado. Os mistérios eternos escapam da minha alça de mira. Escrevo, falo, ensino apenas como vocação. Se conseguir oferecer meus débeis arrazoamentos, ficarei feliz. Foi difícil, mas aprendi: não é possível ser uma unanimidade.

Assim, encaro o desafio fugir do messianismo. Quimeras de onipotência só me feriram. Me colocaram diante de uma dura realidade: toda capacidade tem limites estreitos; mais estreitos do que jamais admiti. Por anos também pensei encarnar Atlas; eu queria carregar o mundo nas costas. Violei a termodinâmica e trabalhei como um moto-contínuo.

Aprendo a dizer não. Celebro o sossego. Desculpo o ócio. Fecho os olhos para os acenos do sucesso. Desejar glória perdeu sentindo. O brilho da fama, que azeitou o meu ativismo, apagou-se. Confesso: eu amei o badalo das multidões. Mas desejo desprezar isso tudo: holofotes, confetes, gabação. Entediado com estrelismo, privilegio ambientes intimistas. Elejo pequenos grupos para um bate papo descontraído.

As decepções foram tantas que devo resguardar-me do cinismo. Presenciei – e até compactuei – com a instrumentalização de pessoas para viabilizar projetos institucionais. Agora, se não viver com integridade, me condeno à senvergonhice.

Eu dava de ombros para os gigantescos campos de exilados das Nações Unidas – sabia explicar direitinho os motivos para Deus derramar sua ira sobre eles. Minha religião se preocupava com trivialidades. Alheio à malária, ao cólera, ao tráfico humano, ao HIV, acreditei e vociferei dogmas redentores. Chego à idade de transformar a caminhada religiosa em espiritualidade compromissada.

Quero arraigar a fé, trazer a devoção para o dia-a-dia, catalisar iniciativas que respondam ao sofrimento do miserável. Salvo a alma se responder à graça, inquietar os confortáveis, confortar os destituídos, provocar engajamento e oferecer o ombro aos indignados com a injustiça. Não sei quantos anos ainda tenho, mas, insisto, eles não serão banais.