Texto de: Pr. Ricardo Gondim
Desde que me entendo por gente, já se passaram muitos séculos, parece.
Eu disquei em telefones de baquelite preta; aprendi datilografia repetindo "asdfg" mais de um milhão de vezes; voei em avião movido a hélice e sem pressurização; cantei os jingles de "quem bebe Grapette repete"; acompanhei a desastrosa Copa de 1966 pelo rádio; estudei em escola pública; fui patrulhado por um infiltrado da ditadura, meu professor de Organização Social e Política Brasileira, o famigerado OSPB, porque escrevi "proletário" em um trabalho de conclusão de curso.
Decididamente não venho deste século. Jurássico, canto com Louis Armstrong: "I hear babies cry, I watch them grow /They'll learn much more than I'll never know".
Depois de tudo, tudo, continuo a perguntar: "Quem sou eu"? Perplexo, não sei delinear a moldura que me distingue dos outros.
Sou um universo de subjetividades;
a mistura dos sons, paladares e cores de minha terra natal;
o tamborilar de chuva em telha de barro, que ressoa desde um quarto antiquíssimo;
a memória sobrevivente de ancestrais defuntos;
o aroma da velha cozinha onde vovó fazia vatapá;
a ruptura de desejos pueris;
o assistente de tragédias sem reposta;
a sintaxe imprecisa de um idioma que se fez minha pátria;
a sede do transcendente que reluz em meus olhos de menino inquieto;
a encarnação do medo perene de rejeição;
o anseio carente de um colo acolhedor;
a negação de fracassos prenunciados;
a vertebração de perseverar como dever;
o profeta da força avassaladora da impotência;
o filho que alterna o terno e o insensível;
o pêndulo que oscila da melancolia para a euforia;
o covarde que se revela audaz;
o corajoso que claudica;
o cético pleno de fé;
o santo que se sabe reles.
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