Texto de: Ed
René Kivitz
Alguém já disse que a família é o lugar dos
maiores amores e dos maiores ódios. Compreensível: quem mais tem capacidade de
amar, mais tem capacidade de ferir. A mão que afaga é aquela de quem ninguém se
protege, e quando agride, causa dores na alma, pois toca o ponto mais profundo
de nossas estruturas afetivas. Isso vale não apenas para a família nuclear:
pais e filhos, mas também para as relações de amizade e parceria conjugal, por
exemplo.
Em mais de vinte anos de experiência pastoral
observei que poucos sofrimentos se comparam às dores próprias de
relacionamentos afetivos feridos pela maldade e crueldade consciente ou
inconsciente. Os males causados pelas pessoas que amamos e acreditamos que
também nos amam são quase insuperáveis. O sofrimento resultado das fatalidades
são acolhidos como vindos de forças cegas, aleatórias e inevitáveis. Mas a
traição do cônjuge, a opressão dos pais, a ingratidão dos filhos, a rixa entre
irmãos, a incompreensão do amigo, nos chegam dos lugares menos esperados:
justamente no ninho onde deveríamos estar protegidos se esconde a peçonha
letal.
Poucas são minhas conclusões, mas enxerguei
pelo menos três aspectos dessa infeliz realidade das dores do amar e ser amado.
Primeiro, percebo que a consciência da mágoa e do ressentimento nos chega
inesperada, de súbito, como que vindo pronta, completa, de algum lugar. Mas
quando chega nos permite enxergar uma longa história de conflitos, mal
entendidos, agressões veladas, palavras e comentários infelizes, atos e
atitudes danosos, que foram minando a alegria da convivência, criando ambientes
de estranhamento e tensões, e promovendo distâncias abissais.
Quando nos percebemos longe das pessoas que
amamos é que nos damos conta dos passos necessários para que a trilha do
ressentimento fosse percorrida: um passo de cada vez, muitos deles pequenos,
que na ocasião foram considerados irrelevantes, mas somados explicam as feridas
profundas dos corações.
Outro aspecto das dores do amar e ser amado
está no paradoxo das razões de cada uma das partes. Acostumados a pensar em
termos da lógica cartesiana: 1 + 1 = 2 e B vem depois de A e antes de C, nos
esquecemos que a vida não se encaixa nos padrões de causa e efeito do mundo das
ciências exatas. Pessoas não são máquinas, emoções e sentimentos não são
números, relacionamentos não são engrenagens. É ingenuidade acreditar que as
relações afetivas podem ser enquadradas na simplicidade dos conceitos certo e
errado, verdade e mentira, preto e branco. A vida é zona cinzenta, pessoas
podem estar certas e erradas ao mesmo tempo, cada uma com sua razão, e a
verdade de um pode ser a mentira do outro. Os sábios ensinam que “todo ponto de
vista é a vista de um ponto”, e considerando que cada pessoa tem seu ponto, as
cores de cada vista serão sempre ou quase sempre diferentes. Isso me leva ao
terceiro aspecto.
Justamente porque as feridas dos corações
resultam de uma longa história, lida de maneiras diferentes pelas pessoas
envolvidas, o exercício de passar a limpo cada passo da jornada me parece
inadequado para a reconciliação. Voltar no tempo para identificar os momentos
cruciais da caminhada, o que é importante para um e para outro, fazer a análise
das razões de cada um, buscar acordo, pedir e outorgar perdão ponto por ponto
não me parece ser a melhor estratégia para a reaproximação dos corações e cura
das almas.
Estou ciente das propostas terapêuticas,
especialmente aquelas que sugerem a necessidade de re–significar a história e
seus momentos específicos: voltar nos eventos traumáticos e dar a eles novos
sentidos. Creio também na cura pela fala. Admito que a tomada de consciência e
a possibilidade de uma nova consciência produzem libertações, ou, no mínimo,
alívios, que de outra maneira dificilmente nos seriam possíveis. Mas por outro
lado posso testemunhar quantas vezes já assisti esse filme, e o final não foi
nada feliz. Minha conclusão é simples (espero que não simplória): o que faz a
diferença para a experiência do perdão não é a qualidade do processo de fazer
acordos a respeito dos fatos que determinaram o distanciamento, mas a atitude
dos corações que buscam a reaproximação. Em outras palavras, uma coisa é olhar
para o passado com a cabeça, cada um buscando convencer o outro de sua razão, e
bem diferente é olhar para o outro com o coração amoroso, com o desejo
verdadeiro do abraço perdido, independentemente de quem tem ou deixa de ter
razão. Abraços criam espaço para acordos, mas a tentativa de celebrar acordos
nem sempre termina em abraços.
Essa foi a experiência entre José e seus
irmãos. Depois de longos anos de afastamento e uma triste história de
competições explícitas, preferências de pai e mãe, agressões, traições e
abandonos, voltam a se encontrar no Egito: a vítima em posição de poder contra
seus agressores. José está diante de um dilema: fazer justiça ou abraçar.
Deseja abraçar, mas não consegue deixar o passado para trás. Enquanto fala com
seus irmãos sai para chorar, e seu desespero é tal que todos no palácio escutam
seu pranto. Mas ao final se rende: primeiro abraça e depois discute o passado.
Essa é a ordem certa. Primeiro, porque os abraços revelam a atitude dos
corações, mais preocupados em se (re)aproximar do que em fazer valer seus
direitos e razões. Depois, porque, no colo do abraço o passado perde força e as
possibilidades de alegrias no futuro da convivência restaurada esvaziam a
importância das tristezas desse passado funesto.
Quando as pessoas decidem colocar suas mágoas
sobre a mesa, devem saber que manuseiam nitroglicerina pura. As palavras
explodem com muita facilidade, e podem causar mais destruição do que promover
restauração. Não são poucos os que se atrevem a resolver conflitos, e no
processo criam outros ainda maiores, aprofundam as feridas que tentavam curar,
ou mesmo ferem novamente o que estava cicatrizado. Tudo depende do coração. O
encontro é ao redor de pessoas ou de problemas? A intenção é a reconciliação
entre as pessoas ou a busca de soluções para os problemas? Por exemplo, quando
percebo que sua dívida para comigo afastou você de mim, vou ao seu encontro em
busca do pagamento da dívida ou da reaproximação afetiva? Nem sempre as duas
coisas são possíveis. Infelizmente, minha experiência mostra que a maioria das
pessoas prefere o ressarcimento da dívida em detrimento do abraço, o que
fatalmente resulta em morte: as pessoas morrem umas para as outras e,
consequentemente, as relações morrem também. A razão é óbvia: dívidas de amor
são impagáveis, e somente o perdão abre os horizontes para o futuro da
comunhão. Ficar analisando o caderno onde as dívidas estão anotadas e
discutindo o que é justo e injusto, quem prejudicou quem e quando, pode
resultar em alguma reparação de justiça, mas isso é inútil – dívidas de amor
são impagáveis.
Mas o perdão tem o dia seguinte. Os que
recebem perdão e abraços cuidam para não mais ferir o outro. Ainda que
desobrigados pelo perdão, farão todo o possível para reparar os danos do
caminho. Mas já não buscam justiça. Buscam comunhão. Já não o fazem porque se
sentem culpados e querem se justificar para si mesmos ou para quem quer que
seja, mas porque se percebem amados e não têm outra alternativa senão retribuir
amando. As experiências de perdão que não resultam na busca do que é justo
desmerecem o perdão e esvaziam sua grandeza e seu poder de curar. Perdoar é
diferente de relevar. Perdoar é afirmar o amor sobre a justiça, sem jamais
sacrificar o que é justo. O perdão coloca as coisas no lugar. E nos capacita a
conviver com algumas coisas que jamais voltarão ao lugar de onde não deveriam
ter saído. Sem perdão não existe amanhã.