segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Natal dos Galhos Secos


Reflexão de: Ricardo Gondim

A estrada se alongava por infinitos quilômetros. Enquanto eu caminhava, braços secos, unhas compridas, tentáculos enormes tentavam me arrastar para dentro de uma ribanceira cinzenta. A caatinga de dezembro, que se fazia de morta para sobreviver à fúria do sol nordestino, ressuscitara só para me atormentar. Meu coração batia lento, num ritmo espaçado. Mas a cada batida, fazia estremecer meu corpo inteiro. Um medo se alastrou dentro de mim e eu suava nas palmas das mãos.

Hoje, passados quarenta anos, ainda caminho por aquela mesma estrada tortuosa e sinistra. Todos os anos, quatro dias antes do Natal, aquele dia revive em minha alma e ainda suo nas mãos.

Eu fora incumbido de levar uma má notícia ao meu tio que morava no sítio denominado de Amargoso. Mamãe, grávida de gêmeos, acabara de dar à luz. Nasceram um menino e uma menina. A menina, chamada Gelsa, não viveria. Sua existência se resumiria a apenas dois longos dias de sofrimento.

Mamãe enfrentara uma gravidez conturbada, devido a prisão de meu pai. Ainda recordo o beijo matinal que ela me dava durante o período em que o mantinham incomunicável. Era um beijo seco. A espera de um telefonema que traria a voz do seu homem, endurecia seus lábios. Toda gestação passou-se nessa agonia, que só acabou quando um jipe da aeronáutica trouxe um documento permitindo nossas visitas. Era mamãe quem conduzia os cinco filhos pela mão por alguns quilômetros até a porta do presídio. Mas, aquela antiga agonia se repetia nos procedimentos burocráticos que nos consumiam por horas; tardavam para não nos deixarem abraçar papai.

Assim, o padecer da Glícia se fez carne incompleta. Minha irmãzinha nasceu com o sistema digestivo imperfeito. Sem poder se alimentar, morreria de fome em dois dias.

Orei minhas primeiras preces por aquela estrada amedrontadora. Com minha sinceridade de criança, pedi que Deus curasse a Gelsinha e que Ele não permitisse torturarem minha mãe ainda mais. Roguei-lhe que preservasse meu pai de chorar na frente de seus algozes. Porém, Deus preferiu permanecer em silêncio. No dia 22 de dezembro, meu pai chorou e a tortura de minha mãe se tornou insuportável.

Soluços paternos ressoarão na noite deste Natal e muitas lágrimas maternais se desperdiçarão sem que haja alguém para enxugá-las. Deus parecerá distante e mudo em seu silêncio absoluto. Por isso, sinto que minha vocação é continuar viajando pelas mesmas estradas amedrontadoras de minha infância; não para levar notícias ruins, mas ser a boca de Deus, expressando novas alvissareiras. Desejo anunciar que se Deus habita no silêncio, ele não é indiferente. Quero ser seus braços para sustentar os frágeis e a resposta da prece das mães tristes. Quero que todos saibam que o Deus ausente se faz presente através de seus filhos.

Ele procura por quem se disponha encarnar sua presença entre mulheres e homens. Por isso, convido-lhe a me acompanhar por aquela estrada seca. Neste Natal, exorcizemos o medo; sejamos o consolo e a felicidade de alguém.

domingo, 18 de dezembro de 2011

A arte de ser feliz


De: Cecília Meireles

Houve um tempo em que a minha
janela se abria para um chalé.

Na porta do chalé brilhava
um grande ovo de louça azul.
Neste ovo costumava pousar
um pombo branco.

Ora, nos dias límpidos,
quando o céu ficava da mesma
cor do ovo de louça,
o pombo parecia pousado no ar.

Eu era criança,
achava essa ilusão maravilhosa e
sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha
janela dava para um canal.

No canal oscilava um barco.
Um barco carregado de flores.
Para onde iam aquelas flores?
Quem as comprava?

Em que jarra… em que sala,
diante de quem brilhavam,
na sua breve experiência?
E que mãos as tinham criado?
E que pessoas iam sorrir de
alegres ao recebê-las?

Eu não era mais criança,
porém minha alma ficava
completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha
janela se abria para um terreiro,
onde uma vasta mangueira
alargava sua copa redonda.

À sombra da árvore, numa esteira,
passava quase o dia todo sentada
uma mulher, cercada de crianças.
E contava histórias.

Eu não podia ouvir, da altura da janela,
e mesmo que a ouvisse, não entenderia,
porque isso foi muito longe,
num idioma difícil.

Mas as crianças tinham tal expressão
no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que na minha janela havia um
pequeno jardim seco.

Era um tempo de estiagem,
de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.

Mas todas as manhãs vinha um pobre
homem com um balde e em silêncio,
ia atirando com a mão umas gotas
de água sobre as plantas.

Não era uma rega:
era uma espécie de aspersão ritual,
para que o jardim não morresse.

E eu olhava para as plantas,
para o homem, para as gotas de
água que caíam de seus dedos magros
e meu coração ficava
completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante
de cada janela, uns dizem que essas
coisas não existem, outros que só
existem diante das minhas janelas
e outros finalmente, que é preciso
aprender a olhar, para poder vê-las assim.